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Que horas ela volta? - leitura do filme

  • luisaevieira
  • 2 de mai.
  • 6 min de leitura

Que horas ela volta? 

Tempo, espaço e possibilidades de escuta




Luísa Evangelista Vieira Prudêncio



Que horas ela volta?, filme brasileiro, dirigido por Anna Muylaert, é lançado no ano de 2015, mesmo ano em que é regulamentada a PEC das domésticas, que já havia sido aprovada em 2013. Também estamos próximo a 2012, ano em que as ações afirmativas se tornam obrigatórias nas Federais. O que antecede a realização desse filme, e a acompanha até seu lançamento parece, então, compor um debate de dois assuntos que deslocam algo importante da estrutura social do país e causam bastante perturbação em quem perde, com isso, alguns privilégios: a herança colonial escravocrata presente na base de sua estrutura. 


Estrutura essa bem materializada na casa e nas relações presentes no filme - desdobramentos da casa grande e da ama de leite, nesse caso uma mulher pobre, nordestina, que carrega a miscigenação em seu corpo, que tem seu corpo explorado pela família branca, sudestina e rica. 


Que horas ela volta tem no próprio título um dos bens mais preciosos expropriado pelo capitalismo: o tempo. O tempo que Val destinou ao cuidado do filho da família rica não pode ser recuperado. O tempo que passou dentro de uma casa e de uma família “quase sua”, quase vista como um sujeito, quase vista por aquele olhar que desliza de seu próprio olhar, que não a enxerga, não sabe o nome de sua filha. Val ali é vista como objeto a serviço do outro, em contraposição à construção da narrativa do filme, que privilegia o olhar dela, por vezes com a câmera, outras pela crítica e pela valorização das palavras, do jeito de falar e gesticular da personagem que ganha o centro da história. Val é a protagonista, em oposição ao seu lugar social e aos muitos papeis já retratados em filmes e novelas, da empregada doméstica coadjuvante.


A partir dela, somos apresentados ao  quarto dos fundos sem janelas para o ambiente externo. Acompanhamos o corpo dela, que parece pertencer, na maior parte da trama, à casa, e não ao mundo ou a ela própria. O corpo que, com exceção da cena do bar e a do aeroporto, serve, cuida, fica em pé ou senta, pode ou não ocupar determinados espaços, de acordo com o que lhe é permitido ou proibido. A porta da cozinha fecha e abre incessantemente, como um marcador dos espaços, da diferença, do que precisa ser escondido, separado: o corpo de Val, o quarto dos fundos. as xícaras e o sorvete. A repetição das cenas em que chamam Val para tirar os pratos, parece a mesma com que insistem em afirmar o seu lugar, repetem, assim como a história se repete, até parecer incrustada nas paredes das casas como algo definitivo.

Aí chega Jéssica, não à toa futura arquiteta - e acho que essa foi uma escolha muito bonita da Anna Muylaert - pega nas mãos a planta baixa dessa casa e mostra à sua mãe a estrutura que sustenta aquela família, material e simbolicamente. Ela aponta para o quarto de Val, traz para os olhos dela o que até a sua chegada parecia estar naturalmente incorporado ali. Porque a arquitetura, ela responde a quem lhe interroga de sua escolha, é instrumento de mudança social. Ela sabe, e nos mostra a todo instante, que as paredes, os cômodos, as portas e as janelas daquela casa contam uma história. Jéssica é segura demais, como falam assim que chega, porque abala aquela arquitetura, que se mostra mais frágil do que antes de sua chegada e do seu desejo de mudança.. Ela bagunça os lugares instituídos, desobedece, causa desconforto, talvez medo? aquele medo de quando algo está prestes a acontecer e o que parecia tão seguro e natural mostra-se em sua fragilidade - a ausência de amor nas relações entre aqueles três, o acidente da mãe, a reprovação no vestibular. A segurança de Jéssica abala as pernas daquela família, o privilégio é abalado, ela ocupa o quarto, cai na piscina e passa na frente. Ela sofre diversas represálias e abusos, os quais consideram seu corpo também um corpo-objeto passível de ser oprimido, controlado, assediado. Mas ela recusa esse lugar. A gente sabe que se essa história continuasse, não seria fácil para Jéssica sustentar essa escolha, as estruturas que alicerçam aquela casa, continuariam na base de todos os empecilhos que ela encontraria pela frente. Mas também acho importante marcar que quando ela nesse momento, banca o desejo de mudança e consegue o que quer, Val, naquela cena maravilhosa na piscina, se autoriza pela primeira vez a entrar onde era proibido. A filha abre passagem, com o seu desejo e a sua segurança, para que ela também transgrida - ocupe o espaço, o tempo e o corpo que lhe foi negado. 

O segundo ato dessa reapropriação se dá em sua demissão, e talvez não à toa, no momento em que Fabinho, do dia pra noite, vai para Austrália - o filho que ela criou e amou, mais que a própria mãe biológica - de repente escancara a realidade de que ela não é da família, ninguém a consultou sobre sua ida. E se ele não está mais ali, se o amor não a liga mais ao serviço, talvez ela possa ir. O amor que justifica tudo em nome do amor. O amor que se espera brotar de uma mulher de forma natural, e que escamoteia todo o trabalho envolvido, e muitas vezes justifica o injustificável. Nesse caso, uma história de quase amor, que fez Val ir ficando. Aos poucos a casa vai se desmoronando, e o que aparece são as relações de poder, que junto com o amor por Fabinho, a mantiveram ali - como se tivesse sido sempre assim, como se esse fosse seu lugar natural, o único destinado à mulher nordestina que migra - o de cuidar do filho e da casa dos outros, servir e obedecer. Até que sua filha lhe questiona desde quando ela aprendeu isso, e aos poucos lhe mostra um outro lugar possível. Agora Val pode também desejar - ser massagista, ter a própria casa, cuidar e amar os seus.


Quando a gente cava esse reboco, a gente tá mexendo em toda uma estrutura sócio-cultural e econômica que sustenta casas, cidades e um país inteiro. 

Em 2023, foi aprovada a Política Nacional de cuidados que reconhece a importância do cuidado e atua na promoção do bem-estar de quem cuida e é cuidado. Mas ainda tramita, por exemplo, o projeto de lei de 2019 da economia do cuidado e o de 2021 da inclusão do cuidado doméstico na aposentadoria. Se a economia do cuidado e esse PL da aposentadoria virasse lei, Val poderia cuidar de sua filha e de seu neto. Mas Val poder cuidar dos seus de forma remunerada representaria um impacto estratosférico nas contas da união, porque Val seria 85% das pessoas acima de 14 anos no Brasil, segundo o PNAD 2022, as quais estão envolvidas no cuidado de casa ou pessoas. Dessas, mais de 90 % são mulheres.

Mexer nisso, seria inverter toda a lógica social, em que a exploração de certos corpos atua em função do desejo e o sucesso de outros corpos, colocando para funcionar, de forma não remunerada, todo um país. Essa arquitetura não é natural, como nos mostra Jéssica. Vera Iaconelli no livro manifesto anti maternalista, diz que esse sistema é sustentado pela desvalorização e pela precarização do cuidado, pela ideia de instinto materno das mulheres, inventada pela ciência, pela ideia de família, por essa estrutura que explora, organiza e controla certos corpos e tempos. Se o cuidado fosse, enfim, considerado um trabalho, nem tudo seria em nome do amor ou do instinto materno, e aí o cuidado teria mais chances de circular entre todos, e as mulheres poderiam escolher mais o que fazer com o seu tempo e seu corpo.


Essa outra arquitetura possível traz consigo interrogações importantes para o nosso trabalho de escuta - desde as discussões das políticas públicas, das práticas institucionais ou clínicas. Podemos com Val, Jéssica e os outros personagens -  nos perguntar quem no Brasil - e mais especificamente no Sul do Brasil - é considerada mãe, quem tem o direito de exercer a sua maternidade, como o cuidado pode ser compreendido e sustentado coletivamente? O que é família? o que é amor? quem é chamada na escola? quem é mais cobrada? Como se escuta um sofrimento atravessado pela violência? e o desejo de quem é cultural e socialmente subalternizado, se escuta? Quando, na nossa escuta, a gente repete os lugares instituídos, e quando a gente contribui para a invenção de outros lugares possíveis de relação, amor, desejo, cidade e sociedade?


*texto escrito para mediação de debate na faculdade de psicologia, da Univali, em 29/04/25.


 
 
 

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